16 outubro 2006

TDAH: Uma epidemia em curso?

TDA/H: uma “epidemia” em curso?

Intervenção de Rossano Cabral Lima no I encontro do Forum de Psiquiatria e Saúde Mental
Psiquiatra Infantil; Mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ

Tem chamado a atenção de clínicos, pediatras, profissionais de saúde mental e educadores a onipresença de uma entidade nosológica pouco diagnosticada no Brasil até uma ou duas décadas atrás: o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDA/H). Em seus domínios, crianças anteriormente tidas como “peraltas”, “mal-educadas”, “indisciplinadas” ou “desmotivadas”, e adultos que se consideravam “desorganizados” e “irresponsáveis”, passam a ser tomados como acometidos por uma disfunção nos circuitos cerebrais, supostamente de origem genética, que provocaria uma deficiência ou inconstância na atenção e um excesso nos níveis de ação. Como entender a explosão atual desse transtorno? Pela versão "oficial", amplamente divulgada na mídia, o número crescente de diagnósticos apenas faria justiça a crianças e adultos que vinham sendo subdiagnosticados, e que agora estariam sendo beneficiários do avanço e da disseminação do saber psiquiátrico. A ciência médica, desse ponto de vista, estaria finalmente mostrando a “verdade” sobre o que esses pacientes realmente têm, e que antes poucos conseguiam enxergar.
Porém, há uma outra possibilidade de compreender a “epidemia” contemporânea de TDA/H. Para isso, precisaremos desviar nosso olhar da fisiologia cerebral e mirar a cultura atual. Nos últimos anos, a pluralidade de abordagens das condutas, afetos e mal-estares individuais tem sido substituída pela hegemonia de concepções fisicalistas, que tendem a reduzir o humano a sua dimensão biológica. Até meados do século passado, tais concepções conviviam com outras que se originavam em diferentes campos e que utilizavam outros vocabulários. Por exemplo, os comportamentos que traziam desconforto a si e a outros podiam ser considerados como tendo causas médicas, mas também podiam ser tomados como efeitos da ação insuficiente ou equivocada de instâncias como a família ou a escola, da falta de obstinação e vontade ou de conflitos interiores. Hoje, explicações psicológicas, pedagógicas ou oriundas da moral leiga são dispensadas como equivocadas e estereotipadas, sendo substituídas, especialmente, por outras que localizam no corpo as razões dos dissabores experimentados na vida. Tem sido notada uma tendência dos indivíduos - sejam eles "normais" ou "desviantes" - buscarem referenciais corporais ou biológicos nos quais ancorar a própria identidade ou a de sua prole. Num mundo no qual os referenciais tradicionais dos quais as pessoas extraiam as matérias-primas de sua identidade, como a Igreja, as ideologias, o trabalho e a família, têm perdido potência e se desagregado, o corpo tem se tornado uma das únicas fontes de certeza e estabilidade. Essa ascenção dos atributos corporais a matrizes identitárias privilegiadas reforça a decadência da interioridade como o lugar no qual se encontra as verdades do eu. Assim, ao invés de procurar saber quem se é por meio de um demorado e complexo mergulho interior, investigando sentimentos e representações conflituosas, tem se preferido recorrer à biologia para explicar temperamentos e comportamentos.
Atribuir suas dificuldades ou as de seus filhos ao TDA/H é um exemplo desse tipo de recurso. Se a princípio seu conhecimento era restrito a setores da comunidade psiquiátrica, essa entidade passou, especialmente a partir dos anos 90, a influenciar o raciocínio clínico de outros especialistas e a fazer parte do vocabulário cotidiano de professores, pais e outros adultos. Tido como o distúrbio psiquiátrico mais comum entre crianças em idade escolar e a principal causa de encaminhamento de crianças para os especialistas, seus sintomas, de início precoce, consistem em hiperatividade, desatenção, subaproveitamento acadêmico, e comportamento impulsivo. Antes descrito quase exclusivamente na infância, faixa etária que ainda hoje responde pelo maior número de diagnósticos, o TDA/H tem sido crescentemente identificado em adultos. Acredita-se que cerca de um a dois terços dos casos do transtorno na infância persista após a adolescência. Há controvérsias sobre o aumento de sua prevalência nos últimos anos. Para diversos autores os instrumentos diagnósticos mais recentes, como as últimas versões do Diagnostic and Statistic Manual of Mental Diseases (DSM-III-R e o DSM-IV, respectivamente sua terceira edição revisada e sua quarta edição) tendem a identificá-lo mais que as anteriores. Da mesma forma, em comparação com o que ocorria há uma década, parece haver uma tendência a incluir casos mais leves, indivíduos com um diagnóstico “subliminar” ou mesmo pessoas que possuam “traços” do transtorno. Apesar de suas taxas médias de prevalência na infância se situarem entre 3 a 5%, estudos em diferentes países (ou mesmo dentro de uma mesma nação) têm encontrado dados discrepantes, com variação entre 1 e 20%. Resultados divergentes também têm aparecido nas pesquisas sobre a fisiopatogenia do TDA/H, apesar das afirmações "definitivas" sobre as origens neurais do transtorno.
Uma das consequências de um diagnóstico de TDA/H é a quase onipresente prescrição de Ritalina (nome comercial da substância metilfenidato), independente da gravidade. O uso da droga, apesar de submetido a rígido controle, tem se tornado um problema de saúde pública, especialmente nos EUA, onde sua produção cresceu 700 % entre 1990 e 1998, quando quase quatro milhões de pessoas - a maioria crianças - usavam o fármaco. No Brasil os números são mais modestos, mas se em 2000 foram vendidas cerca de 71 mil caixas do remédio, em 2004 esse número chegou a 1milhão.
Podemos indagar por que os pais (e outros adultos) têm aderido com tanta rapidez a esse diagnóstico e ao uso do fármaco, por vezes os recebendo com alívio e entusiasmo. Uma das chaves para se entender a explosão de diagnósticos de TDA/H e, principalmente, o sucesso comercial da Ritalina, reside na ênfase atual na performance. À medida que seu padrão econômico se deteriora, a classe média precisa lutar com renovada dedicação para se afastar da linha da pobreza e manter seu nível de consumo. Nessa batalha, a existência de uma medicação que pode melhorar o desempenho (principalmente escolar), independente de um diagnóstico “real” de TDA/H, torna-se muito atraente. A questão, então, desloca-se de por que usar a Ritalina para por que não usá-la. Se o vizinho a usa e apresenta uma melhora da performance no colégio ou no trabalho, por que também não experimentar seus benefícios, ao invés de se dedicar de modo extenuante a uma melhor nota ou a conseguir uma promoção? Vendo a sombra da desatenção ameaçar sua eficácia ou a de seus filhos, resta ao indivíduo poucas saídas - e a identificação com o TDA/H tem sido uma delas. Tem se instalado uma indiferenciação entre os usos terapêutico e cosmético da Ritalina, na lacuna produzida pelas incertas fronteiras entre o transtorno bem definido, suas formas “subclínicas” e seus “traços” presentes nos normais. O transtorno se alimenta dessa indeterminação, pois dela depende o crescente reconhecimento, pelas pessoas, de seus traços de comportamento - ou das condutas dos filhos - nas descrições oferecidas pelo DSM ou suas versões “para leigos” divulgadas na mídia. A despeito das tentativas de aperfeiçoamento de critérios objetivos para a caracterização do TDA/H e sua diferenciação de outros estados, a confusão entre a desatenção “normal”, a supostamente “reativa”, estados de devaneio criativo e a patologia psiquiátrica também persiste porque a entidade já circula de modo semi-autônomo nas cabeças dos professores, nas revistas e cadernos de saúde, na literatura de “auto-ajuda” e no vocabulário cotidiano de pais. Quando essas instâncias, especialmente a escola, avalizam rapidamente o diagnóstico e pressionam pelo uso da medicação, é quase inevitável a inclusão da criança no “admirável mundo” do TDA/H.
A epidemia de TDA/H pode ser considerada um sinal dos tempos. É curioso notar que a metamorfose da tríade desatenção-hiperatividade-impulsividade em doença é estimulada por uma cultura que depende de uma sobrecarga de estímulos perceptivos, de uma permanente disposição em desviar o alvo da atenção, da celebração da agressividade e da mobilidade incessante na busca de sucesso e prosperidade. Exige-se que o indivíduo, a fim de obter uma boa performance em todas os recantos da vida, mantenha-se concentrado em suas atividades, mas também que demonstre uma disposição maleável de trocar o foco de interesse quando desejar ou lhe for requerido. Porém, o limiar a partir do qual uma atenção competente transforma-se em perigosos estados de distratibilidade é muito baixo. Quando a desatenção ou hiperatividade ameaça prejudicar seu potencial competitivo, aderir ao ideário do TDA/H e à Ritalina tem se tornado uma maneira de pais maximizarem a eficácia de seus filhos. Por outro lado, na insuficiência da intervenção escolar ou familiar, a hipótese TDA/H localiza no indivíduo e em sua constituição biológica a explicação dos insucessos acadêmicos, eximindo qualquer instância cultural da responsabilidade pelas dificuldades ou “sintomas” presentes.
Patrocinado pela cultura do corpo e da saúde e pelo primado da biologia, o TDA/H deverá incorporar-se definitivamente à vida contemporânea. Tentar ignorá-lo é tarefa tão condenável quanto sucumbir a sua transformação em doença a explicar todos os desvios das crianças e insucessos dos adultos. Não nos interessa propor um retorno saudosista a uma ordem repressora, que prescrevia castigos físicos e morais para as crianças incômodas ou reservava aos pais uma culpa impotente, por não oferecer-lhes alternativas de ação. Devemos, porém, buscar resistir ou encontrar saídas criativas para a tendência contemporânea a reduzir tudo que é humano a concepções organicistas. A figura do TDA/H pode, assim, encontrar melhor uso quando encarada como um diagnóstico “operacional”, uma descrição que, entre outras, pode ser útil para ajudar a lidar com certos comportamentos infantis. Isso é preferível a sua caracterização como uma “coisa”, como uma doença aparentemente independente dos sujeitos, radicada na rede neural e determinada pela genética, sendo revelada quando a criança preenche um número mínimo de critérios diagnósticos. A aplicação simplista e mecânica desses critérios, na verdade, tem sido um dos motivos do uso irresponsável dessa categoria diagnóstica para além de sua capacidade explicativa. Mais que fazer uma lista de comportamentos presentes ou ausentes, cabe ao profissional contextualizar os "sintomas", investigando sua relação como o ambiente familiar e escolar. Dessa forma, mesmo o uso da Ritalina, que pode ser precioso se bem indicado, será parte de um esforço terapêutico que não pode, e nem deve, ignorar os vários sentidos implicados nas condutas das crianças, ou excluir outras explicações sobre esses comportamentos em nome de uma alegoria neuropsiquiática, cujo uso exagerado pode acabar por resultar em seu próprio descrédito.