A Narrativa na Transmissão da Clínica
Alicia Navarro de Souza*
Lutar com as palavras
é a luta mais vã,
no entanto lutamos
mal surge a manhã.
Carlos Drummond de Andrade
A importância da narrativa na literatura médica atual faz-se possível em função da
tensão estruturante doente/doença inerente à prática médica. Desta forma, a narrativa vem
sendo valorizada na discussão de aspectos éticos e epistemológicos do método clínico e
sua transmissão na formação médica.
Neste artigo apresentamos o trabalho sobretudo de médicos e professores de
literatura nos campos por eles cunhados de
medicina baseada na narrativa, ética narrativae
literatura e medicina, após contextualizar este movimento numa breve história sobre ainstitucionalização dos saberes das áreas humanas e sociais nas instituições médicas.
No Brasil a ênfase na narrativa se encontra restrita a pesquisas qualitativas em
saúde, conduzidas principalmente por profissionais das áreas humanas e sociais. Assim,
cotejaremos o trabalho sobre narrativa apresentado na literatura médica internacional com
iniciativas realizadas na Faculdade de Medicina da UFRJ no campo entre nós conhecido
por Psicologia Médica.
Pretendemos, assim, por em perspectiva
o poder das palavras e as palavras dopoder
cuja dialética é sempre presente na constante e perene problemática dahierarquização de valores na prática e formação médicas.
Uma Breve História
Nas Conferências Introdutórias, Freud (1916 [1915]) nos fala do abismo entre as
operações de conhecimento na medicina e na psicanálise: o
ver e o escutar. E seassociamos o
ver à eficácia de uma ação sobre o real, que é passível de uma reduçãodemonstrativa aos dados sensoriais, e o
escutar ao valor de verdade no discurso, que se dána descoberta interpretativa entre curso associativo e atenção flutuante, tornamos ainda
mais precisa a diferença entre o ato médico e o ato psicanalítico. Como nos diz Freud:
Na formação médica os senhores estão acostumados a
ver coisas. Vêem umapreparação anatômica, o precipitado de uma reação química, a contração de um
músculo em conseqüência da estimulação de seus nervos. Depois, pacientes são
demonstrados perante os sentidos dos senhores: os sintomas de suas doenças, as
conseqüências dos processos patológicos e, mesmo, em muitos casos, o agente da
doença isolado. [...] Assim, um professor de curso médico desempenha em elevado
grau o papel de guia e intérprete que os acompanha através de um museu, enquanto
os senhores conseguem um contato direto com os objetos exibidos e se sentem
convencidos da existência dos novos fatos mediante a própria percepção de cada
um.
Na psicanálise, ai de nós, tudo é diferente. Nada acontece em um tratamento
psicanalítico além de um intercâmbio de palavras entre o paciente e o analista
(Freud, [1916 [1915]] 1976, p.28-29).
Além da diferença entre os modos de conhecer e a questão do valor de verdade,
Freud denuncia o preconceito em relação ao valor da palavra, e nos remete à diferença
entre a cura pela palavra - a palavra realizando-se como ato na transferência - e a cura na
clínica médica, que se realiza como ação sobre o real sem necessariamente desconsiderar o
campo transferencial, quando em seqüência nos fala:
Os desinformados parentes de nossos pacientes, que se impressionam apenas com
coisas visíveis e tangíveis - preferivelmente por ações tais como aquelas vistas no
cinema -, jamais deixam de expressar suas dúvidas quanto a saber se algo não pode
ser feito pela doença, que não seja simplesmente falar. Essa, naturalmente, é uma
linha de pensamento ao mesmo tempo insensata e incoerente. Essas são as mesmas
pessoas que se mostram assim tão seguras de que os pacientes estão simplesmente
imaginando seus sintomas. As palavras, originalmente, eram mágicas e até os dias
atuais conservaram muito do seu antigo poder mágico. Por meio de palavras uma
pessoa pode tornar outra jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero, por palavras o
professor veicula seu conhecimento aos alunos, por palavras o orador conquista
seus ouvintes para si e influencia o julgamento e as decisões deles. Palavras
suscitam afetos e são, de modo geral, o meio de mútua influência entre os homens.
Assim, não depreciaremos o uso das palavras na psicoterapia, e nos agradará ouvir
as palavras trocadas entre o analista e seu paciente (Freud, [1916 [1915]] 1976,
p.29-30).
A questão das relações entre a doença e a pessoa doente e entre esta e a ordem
social ganham destaque no século XX. Na década de 20, na Alemanha, emerge um
discurso médico antropológico, cujos representantes mais expressivos foram Weizsäcker,
Schwartz e Krehl. Esse discurso médico antropológico, usando o modelo compreensivo,
articula a enfermidade internamente com a história de vida do paciente, formulando-a
como uma patologia biográfica. A enfermidade passa a ser considerada não só no plano
da causa, onde ela é explicada pelo discurso biológico, mas também no plano da
significação, onde ela é compreendida como experiência na temporalidade de uma
existência. Este movimento humanista, relacionado a progressivas críticas à prática clínica
pelo seu desinteresse na pessoa do doente, teve seus suportes teóricos na filosofia alemã
kantiana e neo-kantiana.
Na década de 30, surge uma contribuição, cuja expressão e difusão associada à
denominação Medicina Psicossomática, diferentemente da Medicina Antropológica
restringe-se à postulação de uma causalidade psíquica. Em particular os trabalhos de
Alexander e French, psicanalistas do Instituto Psicanalítico de Chicago, propuseram a
presença de conflitos básicos, conflitos típicos da úlcera duodenal, colite ulcerativa,
asma brônquica, neurodermatite, hipertensão essencial, artrite reumatóide e tireotoxicose -
as sete doenças conhecidas, a partir de então, como doenças psicossomáticas. Em nenhum
momento, esses autores interrogam o estatuto social da enfermidade somática.
A postulação de doenças psicossomáticas baseada na psicogênese de certos
transtornos orgânicos aprisiona-se no modelo explicativo-causal, o que contribuiu para a
sua aceitação e difusão no meio médico. No entanto, no meio psicanalítico, essa aceitação
é mais problemática, chegando mesmo a ser entendida como um reducionismo inaceitável.
Na estrutura etiológica da enfermidade passam então a participar outras séries
causais além da causalidade linear biológica, quais sejam as causalidades de ordem
psíquica e as de ordem sociológica e antropológica em sentido estrito. Como escreve Joel
Birman:
A Medicina entra na região da
interdisciplinaridade, adquirindo neste campo depráticas o mesmo estatuto ambíguo, do ponto de vista epistemológico, que em
outros campos teóricos. Com efeito, este conjunto de discursos não se refere ao
mesmo
objeto científico, mas a uma pluralidade de objetos que encontram a suadelimitação e as suas verdades nos saberes de origem: Psicologia, Sociologia,
Antropologia, Psicanálise e Biologia. Eles não se articulam na sua intimidade
conceitual, construindo um outro objeto para o saber médico, mas se justapõem,
tendo como
referente empírico os indicadores da saúde e da doença. Pluralidadediscursiva, dispersão de novos objetos, eis o contexto significativo da questão se a
encaramos da perspectiva da estrita
lógica conceitual de cada um dos saberesreferidos (Birman, 1980, p.25-26) (grifos do autor).
Na década de 50, o psicanalista húngaro Michael Balint desenvolve na Clínica
Tavistock os
Seminários de treinamento e pesquisa sobre problemas psicológicos naprática da clínica geral
, numa tentativa de resposta à demanda social constituída porclínicos gerais que apontavam a insuficiência da formação médica com relação à grande
demanda de doentes funcionais. Balint, considerando que a droga mais freqüentemente
utilizada na clínica geral era o próprio médico, parte para uma proposta interdisciplinar de
estudo da farmacologia da substância médico, empreendendo uma investigaçãotreinamento
das possibilidades de aplicação da teoria psicanalítica no campo dinâmico da
relação médico-paciente. Com o objetivo de estudar e desenvolver a função psicoterápica
dos clínicos gerais em sua relação com seus pacientes - no interjogo das ofertas dos
pacientes e das respostas dos médicos - Balint centrava-se na contratransferência dos
médicos, ou seja, no modo como o médico utiliza sua personalidade, suas convicções,
seus conhecimentos, seus padrões habituais de reação, etc. (Balint, 1975, p.255).
A reconstrução elaborada pelo grupo, nos seminários, sobre um determinado
encontro clínico poderia ser avaliada, compreensivamente, na evolução dessa relação
clínica, em analogia ao processo psicanalítico, validando a interpretação como se faz na
seqüência das sessões psicanalíticas. Nesse sentido, não é suficiente levar em conta apenas
a evolução da doença, mas o paciente como um todo nessa relação clínica com seu médico.
Balint postula a
patologia da pessoa total ou a medicina da pessoa total, o que nos leva aoproblema da interpretação na atividade psicoterápica do médico clínico, a qual
possibilitaria ao paciente compreender-se a si mesmo.
Balint diferencia dois tipos de medicina: a
medicina científica ou hospitalar,ensinada e praticada na sua forma mais pura nos hospitais universitários, e a que ele
denominou de
prática médica. A medicina da pessoa total seria aplicável à práticamédica
, sendo constituída por um diferente tipo de objetividade científica e, nesse sentido,novos critérios deveriam ser desenvolvidos. A
medicina científica ou hospitalar deveriamanter-se referida ao diagnóstico preciso e à terapêutica nele baseada e validada pelo
modelo do experimento duplo cego (Balint & Balint, 1961, p.127).
Evidentemente, os saberes emergem, se difundem e se instituem em maior ou
menor grau, na medida em que respondem a certas demandas que se ordenam no espaço
social, determinando mudanças significativas nas práticas sociais nesse cenário sempre
dinâmico.
No último pós-guerra, rompe-se um silêncio de um século com relação à medicina
social. A medicina passa por um processo de mudança de seu lugar social, retomando um
espaço político pertinente à moderna fase do Capitalismo (Birman, 1980, p.45). Surge,
nessa época, a Organização Mundial da Saúde, que não define a saúde negativamente, mas
a define muito além da vida no silêncio dos órgãos (Leriche
apud Canguilhem, 1978,p.67), numa concepção muito mais ambiciosa:
A saúde é um estado de completo bemestarfísico, mental e social, e não consiste somente em uma ausência de doença ou
enfermidade
(OMS).A saúde é, mais uma vez, mas de certa forma inédita, enfatizada não como um
estado dado pela natureza, mas sim um estado também construído pelos indivíduos
socialmente. A ênfase passa a ser colocada na promoção da saúde referida ao bem-estar
social e à
felicidade humana, ganhando, portanto, a dimensão preventiva da medicinamaior relevância estratégica em relação à dimensão terapêutica.
No último pós-guerra, com as novas concepções de cidadania e saúde, passando a
saúde a ser um direito de todos e um dever do Estado, a questão da promoção da saúde e
bem-estar social emerge com maior destaque. A psiquiatria incorpora o discurso
psicanalítico, por ela transformado, e desenvolve a psiquiatria comunitária. Processa-se,
então, uma reforma nas instituições psiquiátricas no sentido de transformar o ambiente
asilar em um meio terapêutico que, nesse momento histórico, privilegia a atuação sobre as
microrredes das inter-relações pessoais, atingindo diretamente a individualidade (Birman,
1980, p.78).
A psiquiatria trará, então, para a medicina o dispositivo das inter-relações, cuja
expressão mais clara se encontraria nas contribuições de Michael Balint. Com um valor de
humanização da prática médica geral, a psiquiatria, numa mudança de articulação com a
medicina, passa a instituir um discurso sobre a relação médico-paciente, a partir da década
de 50, dando mesmo a ilusão de que a medicina sempre foi, imutavelmente, uma prática
humanista. É, então, somente na década de 50, que o pensamento psicanalítico se articula
de forma original ao pensamento médico, criando práticas específicas na instituição médica
(Birman, 1980, p.31).
A análise realizada por Joel Birman (1980) tem seu valor no sentido do
questionamento do uso de um saber psicanalítico ativamente transformado na prática social
da medicina, aprimorando e justificando o controle sobre os indivíduos e suas relações
interpessoais, embora tenhamos dúvidas quando ele postula que o saber das interrelações
historicamente chegou a se transformar na racionalidade hegemônica da
medicina, deslocando a um plano secundário a racionalidade anátomo-clínica (p.140). Se
a psiquiatria, a partir da influência de uma psicanálise diluída no seu valor crítico e
subversivo, ampliou o poder médico, não só o instrumentando para uma finalidade
adaptativa dos indivíduos aos seus ambientes sociais, mas também chegando a possibilitar
um acesso abusivo às pessoas que nada tem a ver com o projeto freudiano, ao mesmo
tempo, como o autor reconhece, ela trouxe um questionamento ao projeto ético e
terapêutico da medicina, limitando seus excessos pragmáticos reduzidos à maquinária
corporal (p.73). É, sem dúvida, reconhecendo esses dois
perigos na inter-relação entrepsicanálise e medicina, que se pode trabalhar criticamente. Nesse sentido, concordamos
com Birman que a relação médico-paciente assume configurações que não são só função
das biografias de seus atores, mas, também, função do lugar social designado para o
médico, o paciente e a enfermidade historicamente situados e não essências transhistóricas
como se ilude até hoje a visão positivista do saber (p.176).
Uma expressão do prestígio social da articulação dos discursos das ciências
humanas e sociais com o discurso médico pode ser depreendida do grande número de
pesquisas realizadas nos EUA, na área conhecida por Ciências do Comportamento, entre
1954 e 1960, sendo um quarto delas voltadas para os aspectos psicossociais das
enfermidades (Health Information Foundation, 1961
apud Birman, 1980, p.49).Na década de 50 e 60, as escolas médicas americanas tinham psiquiatras de
orientação psicanalítica e cientistas sociais
1 que pesquisavam e ensinavam o interjogodinâmico dos fatores psicológicos, sociais, culturais e biológicos na saúde, na doença e no
cuidado aos pacientes. São também deste período os estudos clássicos sobre o processo de
socialização através do qual estudantes de medicina se transformam em médicos
2, assimcomo estudos críticos sobre o hospital como organização social e sua repercussão nas
relações entre profissionais de saúde, pacientes e familiares, com ênfase no poder médico e
a conseqüente desumanização, assujeitamento ou objetificação do doente implicada em seu
exercício
3.Nos EUA, com o surgimento nos anos 70 do campo interdisciplinar conhecido por
bioética e com o desenvolvimento da psiquiatria de orientação predominantemente
biológica, na maioria das escolas médicas, progressivamente, a bioética vem ocupando o
lugar da psiquiatria e das ciências sociais na transmissão de conteúdos não-biomédicos
aos estudantes de medicina (Fox, 1999, p.8).
4Destacamos a recente análise de Renée Fox (1999) que nos afirma que, desde a
reforma flexneriana em 1910, o ensino dos aspectos não-biomédicos nas escolas médicas
americanas tem sido persistentemente problemático e freqüentemente não bem sucedido
(p.4). Como disciplina isolada, geralmente de curta duração, oferecidas durante o ciclo
básico (primeiro ou segundo ano pré-clínicos), as ciências do comportamento e também
mais recentemente a bioética ou as humanidades médicas não conseguem integrar-se ao
ensino da clínica.
Na Faculdade de Medicina da UFRJ, a disciplina de Psicologia Médica dedicada ao
ensino da relação médico-paciente foi introduzida pelo Prof. Danilo Perestrello, psiquiatra
e psicanalista, ainda nos anos 50. No entanto, como esses saberes se articulam numa
prática particularizada? Desde 1980, como professora da disciplina de Psicologia Médica
do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal e em atividades docente-assistenciais no
Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, nunca tivemos a oportunidade de nos
deparar com uma História da Pessoa
5 - item da anamnese instituído na folha padrão doprontuário médico - preenchida, exceto nos seus aspectos referidos aos chamados hábitos
(fumo, álcool, tóxicos, anticoncepcionais), padrões de alimentação e características de
moradia. A título de ironia comentaríamos, ainda, que por vezes o espaço se encontra
totalmente em branco e, uma vez, foi assim preenchido: nada de relevante. Sob a
epígrafe História da Pessoa encontramos o silêncio ou a rara explicitação registrada:
nada de relevante.
Literatura e Medicina
Em 1994, cerca de um terço das escolas médicas dos Estados Unidos tinham em
seus currículos cursos de literatura e medicina, a maioria sendo oferecida nos anos préclínicos,
como parte do currículo obrigatório ou como módulo eletivo, em geral,
integrando o ensino de
medical humanities (humanidades médicas) que contempla estudosem filosofia, história, direito, religião, etc. (Charon e cols., 1995). Em 1998, o ensino de
literatura e medicina já havia se expandido para 74% (93/125) das escolas médicas
americanas (
Association of American Medical Colleges Curriculum Directory 1998/1999apud
Charon, 2000) indicando claramente sua importância institucional no ensino médico.Com o estudo da literatura pretende-se desenvolver a competência narrativa,
aumentar a tolerância à incerteza da prática clínica e propiciar a atenção empática a
pacientes. Por competência narrativa os autores enfatizam a capacidade de adotar outras
perspectivas, de seguir o encadeamento de histórias complexas, por vezes caóticas, tolerar
ambigüidade e reconhecer os múltiplos, freqüentemente contraditórios, significados dos
acontecimentos vivenciados pelas pessoas. Participam do ensino doutores em literatura e
doutores em medicina, fortemente interessados na contribuição da literatura à prática
clínica, sendo esse trabalho conjunto, na opinião dos autores, a estratégia ideal para todas
as iniciativas no ensino das humanidades no curso médico (Hunter e cols., 1995).
Os autores consideram como um dos elementos mais importantes, ausente nos
cursos de graduação de literatura assim como nas outras disciplinas do curso médico, a
exploração explícita das associações e respostas emocionais dos leitores suscitadas pela
leitura de textos literários. A partir do texto, propicia-se que os estudantes discutam
percepções, crenças e valores.
6Freud, na sua conferência para a associação médica de Viena, em 1904, defendendo
a causa da psicoterapia, a mais antiga forma de terapêutica em medicina, menciona os
efeitos da sugestão determinados pela transferência na relação médico-paciente e
valoriza a palavra de conforto que os médicos podem trazer aos doentes.
A função psicoterápica na relação médico-paciente ou o poder terapêutico das
palavras reconhecido por Freud que, apenas na década de 50, com o trabalho pioneiro de
Balint ganhou maior difusão entre os médicos, retorna atualmente na literatura médica
internacional com a valorização da narrativa na prática médica. Vários trabalhos apontam
neste sentido através da produção de textos na relação médico-paciente, ora textos escritos
por médicos sobre seus pacientes, posteriormente a eles apresentados (Charon, 2001), ora
textos produzidos por pacientes a partir da demanda de seus médicos (Charon et al,1996).
Rita Charon nos fala sobre este ato na sua experiência com seus pacientes:
Se o meu ato de escrever constituiu um passo na geração de hipóteses na forma de
uma pesquisa intersubjetiva, apenas o paciente poderia testar a hipótese. [...] Foi
como se o meu ato de escrever sobre e para meus pacientes desencadeasse um
processo de desvelamento que talvez ocorresse mais tarde, se é que ocorreria, na
relação. E, mais importante, este desvelamento foi terapêutico (Charon,2001, p.85).
É com familiaridade mas também com certa estranheza que lemos esta produção de
médicos e professores de literatura. A estranheza é por conta da ausência de referência
nestes textos da contribuição institucionalizada de psicanalistas e cientistas sociais à
formação e prática médicas e, também, o entusiamo romântico que transparece na
descoberta destes autores do poder terapêutico das palavras, da dimensão e eficácia
simbólicas presentes nos atos médicos. Esta estranheza é que talvez nos fez alongar a breve
história com a qual tentamos contextualizar este movimento atual, certamente enriquecedor
para a prática e a educação médicas, mas não sem importantes tensões.
Os autores, em geral, enfatizam fatores que contribuem atualmente para uma
prática médica impessoal, entre eles, a especialização e a tecnologização da medicina, o
mercado de trabalho e a revolução da informática, para sugerirem contextualmente a
emergência da narrativa na prática médica com um valor de humanização.
Entre nós, em 1987, Zaidhaft (1990) e Spitz introduziram o uso de textos literários
na avaliação dos alunos na disciplina de Psicologia Médica. Selecionaram textos das obras
A morte de Ivan Ilitch
de Leon Tolstoi e Uma morte muito suave de Simone de Beauvoir,que nos falam da experiência do adoecimento, da proximidade ou da antecipação da morte
e das relações vividas entre enfermo, familiares e médicos. Analisando a experiência
pedagógica, os professores sublinham a originalidade, a criatividade nas respostas dos
alunos, que não teriam se limitado a escrever simplesmente o que imaginaram que o
professor gostaria de ler (p.149).
Tendo em mente seu auditório, Zaidhaft (1990) explicita as questões inevitáveis: o
que tudo isso tem a ver com Medicina? Filmes, romances, respostas originais? (p.149).
Para o autor, a possibilidade de narrativas sobre como os médicos são vistos por pacientes
e seus familiares, como as decisões médicas repercutem e podem determinar o rumo da
vida e da morte de uma pessoa teriam o objetivo de contribuir para a reflexão crítica dos
alunos sobre sua prática e de preservar a sensibilidade, a capacidade de perceber a si
próprios e a seus pacientes como seres humanos (Cf. Zaidhaft, 1990, 143-149).
Foucault faz uma observação interessante sobre o discurso científico e literário a
partir do século XVII e
a função do autor: no primeiro, ela se enfraqueceu e, no segundo,ela se reforçou. Ora, médicos iludidos como homens de uma prática científica não podem
pretender a função de autor, mas apenas se tornarem conhecedores competentes de um
sistema anônimo - a medicina enquanto disciplina. No entanto, sua aplicação ao caso
singular, no cotidiano de uma prática personalizada, mesmo que institucionalizada,
convoca o sujeito como função da intersubjetividade (Vital Brazil, 1998) e implica o
conflito das escolhas responsáveis sobretudo para os médicos que, por sua vez, lidam
também, com dificuldade, com as possíveis escolhas responsáveis dos pacientes.
Nesse sentido é importante a busca do trabalho interdisciplinar de médicos e
professores de literatura na formação médica, a partir da década de 70, no sentido de
sensibilizar os estudantes de medicina à dimensão narrativa, problematizando a função de
autor na prática médica. Esta função torna-se mais evidente quando consideramos o
julgamento clínico indissociável de uma ética.
Ética Narrativa
A ética narrativa vem ganhando maior relevância à medida que cresce a
insatisfação com a ética baseada em princípios autonomia, beneficência/não-maleficência
e justiça que, de modo analítico, aplica estes princípios universais a casos particulares
visando a solução de dilemas éticos.
Numa primeira fase, sobretudo até os anos 90, a presença da literatura nas escolas
médicas americanas era freqüentemente justificada por sua contribuição ao ensino da ética
médica. Textos literários, em especial escritos por médicos escritores, eram apresentados
como exemplos de caso para a aplicação dos princípios éticos gerais visando determinar
logicamente a melhor solução ética para os dilemas do caso.
7 No entanto, a riqueza dostrabalhos literários propiciou o aprendizado de algo a mais do que a autonomia do
paciente, o paternalismo médico, etc... Os alunos começaram a perceber como princípios
éticos e argumentos podem, algumas vezes, ser usados para racionalizar um
comportamento anti-ético (Jones, 1999, p.254).
Nos últimos anos, o trabalho de professores de literatura na medicina tem sido
marcado por seu interesse na centralidade da narrativa no trabalho médico (Jones, 1997).
Atualmente, distingue-se
abordagens narrativas ou contribuições da narrativa à éticamédica, que se utiliza das técnicas de análise literária para enriquecer a prática de ética
médica baseada em princípios, e a ética narrativa, que busca substituir o principalismo
por uma prática paradigmaticamente diferente (Jones, 1999, p.255).
No campo das contribuições da narrativa à ética médica, Rita Charon se destaca,
defendendo a aplicação de métodos da crítica literária e teoria da narrativa à prática médica
para propiciar que os médicos se tornem narrativamente competentes podendo, inclusive,
prevenir crises na relação médico-paciente envolvendo dilemas éticos. As mesmas
questões que os alunos aprendem a formular ao ler um texto literário podem ser aplicadas
na análise de textos ou práticas éticas.
Já a ética narrativa, partindo do caso particular, considera os princípios da ética
médica analítica como valores ideais inerentes ao contexto cultural do caso e não como
princípios absolutos a serem aplicados. Referindo-se ao trabalho de Kathryn Hunter (1991)
- para quem o julgamento clínico e as considerações éticas são indissociáveis e,
essencialmente, narrativos - Jones nos fala que a ética narrativa, ao partir do caso
particular, opera de modo análogo ao raciocínio clínico, que não é nem indutivo nem
dedutivo, mas sim abdutivo, ou seja, um procedimento hermenêutico, circular que busca a
aplicação de leis ou princípios ao caso particular (Jones 1999, p.256). Como nos diz
Hunter:
Embora princípios sejam essenciais para a bioética e a ciência biológica precisa
sempre informar a boa prática clínica, a tendência a colapsar a moralidade em
princípios e a medicina na ciência empobrece ambas as práticas. Em ambos os
casos, tal redução toma a ciência como modelo para algo que não pode ser
puramente científico. É uma tentativa de conhecer de modo genérico e abstrato o
que não pode ser conhecido a não ser através do caso particular e para ser melhor
conhecido este caso precisa ser ricamente conhecido (Hunter, 1996, p.316).
A ética narrativa, considerando de forma não-hierárquica e dialógica as diversas
perspectivas, valores, emoções dos sujeitos implicados no caso sempre contextualmente
situado, é vista como controversa e, mais de uma vez, foi referida como perigosa por
autores conhecidos do campo da bioética (Jones, 1996, p.268)8. No entanto, não podemos
deixar de sublinhar que ela é muito mais próxima da psicanálise. Mais uma vez dando a
palavra a sua principal defensora:
Na sua forma ideal, a ética narrativa reconhece a primazia da estória do paciente,
mas encoraja que sejam ouvidas as múltiplas vozes com suas múltiplas estórias de
todas as pessoas cuja vida estará de algum modo implicada pela resolução do caso.
Paciente, médico, família, enfermagem, amigos, assistente social, por exemplo,
podem compartilhar suas estórias num coro dialógico que pode oferecer a melhor
chance de respeitar todas as pessoas envolvidas no caso (Jones, 1999, p.256).
Medicina Baseada na Narrativa
A partir de um caso clínico Dra. Greenhalgh (1998) aborda a questão da narrativa
de uma forma original ao usar o paradigma narrativo interpretativo. Ela nos relata a
seguinte vinheta clínica:
Dr. Jenkins recebeu um telefonema de uma mãe que disse que sua filha pequena
tinha tido uma diarréia e estava se comportando de modo estranho. Dr. Jenkins
conhecia bem a família e ficou tão preocupado que decidiu interromper seu
consultório, em plena manhã de 2ª feira, para visitar a paciente imediatamente
(p.253).
A partir desta ação, Dr. Jenkins confirmou sua hipótese diagnóstica de meningite
meningocóccica tendo esta decisão conseqüências definitivas para sua jovem paciente.
Greenhalgh destaca que a hipótese diagnóstica foi baseada em dois sintomas muito
inespecíficos (diarréia e comportamento estranho) e, ainda, por um clínico geral que havia
feito apenas uma vez este diagnóstico em 96.000 consultas.
Greenhalgh apresenta sua interpretação sobre o processo decisório ou o possível
desenvolvimento do julgamento clínico realizado por Dr. Jenkins. A autora supõe que Dr.
Jenkins tenha integrado criteriosamente evidências bem selecionadas (por exemplo, a
diferença no prognóstico em função da administração urgente ou não de penicilina quando
do diagnóstico precoce de meningite menincogóccica) com o significado potencial da
expressão de modo estranho utilizada pela mãe da paciente ao qualificar o
comportamento da filha (esta não é inclusive uma expressão freqüentemente utilizada por
pais ao descrever manifestações de doenças inespecíficas em seus filhos) e, ainda, com seu
conhecimento da família, que o informava não se tratar de pessoas de estilo queixoso assim
como o comportamento da criança, até então, nada tinha de extraordinário.
Com este exemplo, Greenhalgh argumenta sua principal tese, qual seja, de que a
medicina baseada na narrativa
deve complementar a medicina baseada em evidência pois,no caso particular, as evidências são sempre parte de um história construída, portanto, uma
interpretação, a partir de diversos elementos, inclusive elementos contextuais. Como nos
diz a autora, se o Dr. Jenkins tivesse abandonado seu julgamento clínico em prol de uma
simples adesão ao protocolo de diagnóstico precoce e tratamento de meningite, ou seja,
tivesse abandonado o trabalho interpretativo em favor da orientação sugerida pela
evidência descontextualizada, possivelmente a paciente não teria sido salva e o trabalho
médico teria resultado frustrante, como freqüentemente tem sido registrado em estudos
sobre a aplicação pelos profissionais dos resultados da pesquisa baseada em evidências.
Enfatiza Greenhalgh (1998): as verdades estabelecidas pela observação empírica de
populações em ensaios controlados randomizados e estudos de cohorte não podem ser
mecanicamente aplicados a pacientes individuais cujo comportamento é irremediavelmente
contextual e idiossincrático (p.251).
Como analisa Madel Luz (1988), o surgimento de uma racionalidade anátomoclínica,
inscrita na racionalidade científica moderna mecanicista e organicista, levou a uma
transformação progressiva da medicina no sentido de um deslocamento epistemológico
de uma arte de curar indivíduos para uma disciplina das doenças, passando a configurar
para o médico, na sua prática clínica, uma tensão conflitiva entre o artesão da cura e o
cientista da doença. O cientista da doença está referido a um paradigma analítico que
busca o universal através da objetivação da doença. O artesão da cura está referido a um
paradigma indiciário, que postula a exigência da interpretação dos dados e a relevância dos
fatos singulares na clínica, em referência a um conhecimento construído pela acumulação
de experiências singulares e particulares ao diagnosticar e tratar inúmeros pacientes.
Esse paradigma indiciário é uma postulação de Ginzburg ao pretender contribuir
para a discussão da produção do conhecimento em ciências humanas, tentando sair dos
incômodos da contraposição entre racionalismo e irracionalismo (Ginzburg, 1989, p.143).
Para esse autor, tal paradigma passou a ter expressão a partir do final do século XIX e ele
nos mostra, inclusive, como Freud foi reconhecidamente influenciado por ele, como nos
ilustra uma passagem em
O Moisés de Michelangelo (1914). E o próprio Ginzburg nos falada importância desse paradigma na medicina:
Ora, é claro que o grupo de disciplinas que chamamos de indiciárias (incluída a
medicina) não entra absolutamente nos critérios de cientificidade deduzíveis do
paradigma galileano. Trata-se, de fato, de disciplinas eminentemente qualitativas,
que têm por objeto casos, situações e documentos individuais,
enquantoindividuais
, e justamente por isso alcançam resultados que têm uma margemineliminável de casualidade; basta pensar no peso das conjeturas (o próprio termo é
de origem divinatória) na medicina (Ginzburg, 1989, p.156) (grifos do autor).
A racionalidade anátomo-clínica, que organiza as diferenças dos casos
individuais na construção da doença enquanto modelo descritivo e explicativo, quando
articula o olhar à linguagem - o olhar loquaz que investiga e descobre - não pode excluir
a questão da interpretação dos sintomas e sua transformação ou não em signos de doença
no raciocínio diagnóstico realizado pelo médico na sua prática clínica. No entanto, como
nos aponta Foucault:
O médico, pouco a pouco, deixou de ser o lugar de registro e de interpretação da
informação, e porque, ao lado dele, fora dele, constituíram-se massas
documentárias, instrumentos de correlação e técnicas de análise que ele tem,
certamente, que utilizar, mas que modificam, em relação ao doente, sua posição de
sujeito observante (Foucault, 1995a, p.38).
O estarmos "talvez no limiar de uma nova medicina aparece incidentemente
nesse contexto da argumentação de Foucault
9, o que nos faz pensar na desvalorização daprática clínica como produção de conhecimento sobre as doenças no contexto significativo
da relação médico-paciente.
Não muito tempo após a morte de Foucault, surge a
medicina baseada emevidência
, um discurso sobre a clínica que pretende fazer uma ciência da arte médica aoestabelecer uma racionalidade a partir da articulação dos conhecimentos clínico e
epidemiológico sobre as doenças.
Seus principais autores preocupam-se com o fenômeno por eles denominado
discrepância clínica, ou seja a inconsistência entre observações quer de dois ou mais
médicos (inconsistência interobservador) quer de observações repetidas pelo mesmo
médico (inconsistência intraobservador) que, em alguns estudos chega a 50%, seja a cerca
de elementos da história clínica, do exame físico, da interpretação de provas diagnósticas,
seja do diagnóstico formulado ou da escolha da conduta terapêutica (Sackett et al, 1994,
pp.38-48).
Na definição de seus principais autores:
A medicina baseada em evidências consiste no uso judicioso, explícito e
consciencioso da melhor evidência disponível para a tomada de decisões que se
referem ao cuidado de pacientes individuais. A prática da medicina baseada em
evidências significa integrar perícia clínica individual com a melhor evidência
clínica externa disponível, obtida a partir de pesquisa sistemática. Por perícia
clínica individual entendemos a proficiência e julgamento que cada clínico
individualmente adquire através de sua experiência e prática clínicas. [...] Por
melhor evidência clínica externa disponível nos referimos à pesquisa clinicamente
relevante proveniente freqüentemente das ciências básicas da medicina, mas,
especialmente, à pesquisa clínica centrada no paciente, acerca da precisão e
exatidão dos testes diagnósticos (incluindo o exame clínico), do poder preditivo de
marcadores prognósticos e da eficácia e segurança de regimes terapêuticos,
preventivos e de reabilitação (Sackett et al, 1996, p.71).
O crescimento exponencial do conhecimento na área médica, sua conseqüente
especialização e, ainda, o desenvolvimento acelerado da tecnologia, aumentam as
exigências para o médico na realização de suas escolhas e decisões em sua prática clínica.
A
medicina baseada em evidência, pretendendo uma racionalização das decisões médicas,é uma tentativa de resposta que, objetivando uma prática mais útil, eficiente, menos cara e
pretensamente mais científica, vem tendo uma penetração privilegiada, mas não sem
controvérsias.
Concordamos com Serpa (1999) quando ele nos fala que a semiologia médica
consiste no conjunto de técnicas de produção de evidências e que devemos compreender o
conhecimento produzido por ensaios controlados randomizados, a metanálise, enfim, a
produção da medicina baseada em evidência como algumas, entre muitas, possibilidades
de narrativa. Boas, enquanto servirem a determinados fins, mas não as melhores para todo
e qualquer fim (p.73-74).
A Voz dos Pacientes e a Escuta dos Médicos
O problema é dar
voz aos pacientes na sua experiência de doença e tratamento, nassuas expectativas, anseios, preferências, o que nos remete ao
contexto desta comunicação,num primeiro plano, ao modelo de relação médico-paciente.
Em nossa experiência num hospital público universitário na cidade do Rio de
Janeiro, o modelo hegemônico é o modelo paternalista que, em essência, pressupõe que o
médico detém todo o conhecimento necessário para definir o problema e as melhores
soluções em termos de tratamento, de tal forma que suas decisões e ações necessariamente
se darão no melhor interesse do paciente sem que este expresse suas expectativas,
preferências, enfim valores, veiculados a sua experiência de sofrimento.
O fato de apresentarmos em sala de aula, na disciplina obrigatória de Psicologia
Médica, os diferentes modelos de relação médico-paciente paternalista, informativo, de
decisão compartilhada e discutirmos suas implicações, ainda que apoiados no argumento
de autoridade, geralmente tão eficaz, representado por artigos recentes de periódicos
médicos internacionais de reconhecido prestígio e, também, pelo documento
Os Direitosdo Paciente
tornado lei estadual em São Paulo, evidentemente, nosso esforço não supera oefeito pedagógico maior que é a identificação que os alunos realizam com médicos e
professores no exercício da prática médica.
Apenas no modelo de decisão compartilhada os médicos estão comprometidos com
uma relação com seus pacientes, cujo desenvolvimento evidentemente é muito mais
complexo do que o modelo paternalista ou o informativo, que são as alternativas mais
difundidas entre estudantes e médicos, o primeiro por sua tradição, não só em nossa
cultura, e o segundo pela marcante influência da cultura médica americana entre nós.
Não podemos deixar de destacar um belo exemplo, recentemente publicado pelo
British Medical Journal
,10 de um clínico geral e sua paciente assintomática dehemocromatose diagnosticada através de teste genético. Os dois vivem
a posteriori adúvida de se ter realizado o tratamento teria sido, de fato, a melhor opção. O comentário de
um outro clínico geral e de um hematologista enriquecem a discussão.
Sem dúvida, o reconhecimento do limite e da incerteza do conhecimento médico no
exercício da prática médica se articula à valorização da escuta do paciente, ao valor de suas
palavras, de sua experiência. Isto nos lembra Foucault quando ele nos fala da crítica à
profissão médica que, a seu ver, não é essencialmente por ser um empreendimento
lucrativo, porém, porque exerce, um poder sem controle sobre os corpos das pessoas, sua
saúde, sua vida e morte (Foucault, 1995b, p. 234). Para esse autor, um dos aspectos
críticos da medicina atual é o risco associado, não à ignorância, mas ao desenvolvimento
do conhecimento, das tecnologias e do poder político.
11O verdadeiro problema é o que eu chamaria, não de iatrogenia, mas de iatrogenia
positiva: os efeitos medicamente nocivos que se devem, não a erros de diagnóstico
ou à ingestão casual de medicamentos, mas à própria ação da intervenção médica
no que ela tem de racionalmente fundada. [...] Não é mais o não-saber que é
perigoso, mas o próprio saber. E o saber é perigoso não somente por suas
conseqüências imediatas ao nível do indivíduo ou de grupos de indivíduos mas ao
nível da própria história. Esta é uma das características fundamentais da crise atual
(Foucault, 1974, 1ª Conferência).
A Voz de Estudantes de Medicina e a Escuta de Professores: uma Proposta
Instituída
Podemos iniciar a discussão sobre o valor da troca de palavras entre alunos e
professores com este fragmento de um texto entregue ao professor de Psicologia Médica,
por uma aluna do 6º período do curso médico sobre sua experiência ao tratar de um
paciente terminal:
... E vou dizer também que ando um pouco triste e, em parte, é devido à falta de
ficção na minha medicina, construída ultimamente apenas com livros técnicos; e
que esta falta me é tão grave quanto a falta de sódio ou potássio num organismo, e
que, além de querer para mim, quero aumentar a carga circulante dessa delicadeza
em algumas pessoas, as que sei possuírem receptores centrais e periféricos para
estas partículas inofensivas.
A discussão de casos clínicos coloca uma questão, a nosso ver, central na formação
da identidade médica. Concordamos com Byron Good
12 quando ele diz que as atividadesde apresentação oral e escrita sobre pacientes realizadas pelos alunos são
práticasformativas
, que não descrevem meramente a realidade, mas constituem formas deconstruí-la: a construção do paciente como caso clínico, como um projeto médico -
informações apreciadas como relevantes para a elaboração do diagnóstico e das decisões
terapêuticas (Cf. Good, 1994, p.76-83).
Na Faculdade de Medicina da UFRJ, os alunos do 4º período iniciam a
apresentação oral e escrita de casos clínicos realizando anamneses e exames físicos que são
apresentados, rotineiramente, aos professores de Clínica Médica para serem avaliados. Nos
6º e 7º períodos, os alunos passam a escrever nos prontuários suas anamneses, exames
físicos mas, sobretudo, as evoluções clínicas diárias. Começam, também, a participar dos
rounds
da enfermaria e, mais eventualmente, de sessões clínicas dos postos ou serviços,onde os internos e residentes são os principais relatores de casos clínicos.
Desnecessário dizer que nas apresentações habituais de casos clínicos, a pessoa do
paciente é essencialmente um lugar geográfico que sedia a doença e não um lugar
enunciativo ou de um agente narrativo. As apresentações orais e escritas são, portanto,
fundamentais, tanto na construção da identidade médica do aluno, quanto na construção da
identidade do paciente como caso médico ou como objeto do olhar e do discurso
médicos. A medicina constrói, assim, os seus objetos como objetos de conhecimento na
formação dos médicos, que informam a direção de um olhar que pressupõe o que deve ser
visto. Estas apresentações narrativas geram efeitos importantes: estruturam o diálogo com
o paciente em todo o processo clínico, da anamnese à alta, e estruturam, também, o diálogo
entre os alunos e outros estudantes ou profissionais da equipe de saúde. E, evidentemente,
esse diálogo, na hierarquia de uma instituição médica de ensino, determina que os alunos,
ao serem alvo de um controle disciplinar, aprendam falas, gestos prescritos e proscritos.
Valorizando a demanda de alguns alunos, geralmente associada à experiência nova
de assunção de pacientes, e valorizando também o nosso interesse de investigar as
vicissitudes no diálogo sistemático com um professor de Clínica Médica e alunos durante o
ciclo clínico e, ainda, aproveitando a oportunidade institucional que a reforma curricular
introduziu, propusemos uma disciplina eletiva -
Reflexão sobre a Prática Médica.Esta disciplina consiste num grupo de discussão, que se aproxima da forma de
seminário, instituído como atividade prática, sem pretensão de fornecer conteúdos
teóricos pré-estabelecidos, coordenado por nós com a colaboração de um professor do
Departamento de Clínica Médica, e centra-se na experiência clínica dos alunos, nas
situações por eles vividas na relação com o paciente, sua família e a equipe de saúde.
Assim, no âmbito de nossa disciplina
Reflexão sobre a Prática Médica, aapresentação de um caso clínico se coloca dialogicamente em relação aos outros modos de
apresentação de casos em contextos mais habituais durante a formação médica. É um
sistema dialógico complexo porque o aluno, ao apresentar o caso, tem como interlocutores
o professor de Psicologia Médica, o professor de Clínica Médica e os outros alunos; mas
para além dos interlocutores sempre presentes há os auditores presumidos que, como
destinatários, são presenças imanentes e que, portanto, se fazem presentes nos três
discursos que diferenciamos nesse grupo. Há ainda os personagens do mundo médico -
os pacientes, os familiares, os interlocutores do
round, os outros profissionais da equipe desaúde - freqüentemente citados nas falas, e os personagens do mundo pessoal do aluno.
Oferecida desde 1992, observamos que a demanda à disciplina
Reflexão sobre aPrática Médica
se restringe sobretudo a alunos do 6º e 7º períodos, apesar de nela poderemse inscrever alunos de quaisquer períodos a partir do 6º período. Pensamos que essa
demanda de estudantes de 6º e 7º períodos se associa à sua experiência de desamparo pelo
confronto com o sofrimento e a morte de seus primeiros pacientes associada a um saber
reconhecidamente mais limitado que possuem. Esse momento da formação médica é
reconhecido por vários autores como uma fase de maior intensidade conflitiva. Eles se
encontram praticamente no início do ciclo profissional e constituem o grau inferior na
hierarquia da equipe médica de uma enfermaria clínica e, portanto, ainda muito vulneráveis
às incertezas e às situações angustiantes da prática clínica.
13O desafio para os profissionais de Psicologia Médica no ensino e no exercício da
clínica sempre foi o diálogo, a produção de um intertexto, no contexto dialógico que vai
além de uma relação entre os interlocutores. A simples adesão a uma proposta que implica
reuniões semanais durante todo um semestre, sem temas pré-fixados, nas quais se pretende,
com a bússola dos conhecimentos médico e psicanalítico, lidar com o desafio de discutir
problemas que alunos experimentam no inesperado de sua aventura clínica, exige uma
certa destituição narcísica, que possibilita a participação produtiva nestes grupos de
discussão.
A proposta encerra, de alguma forma, a possibilidade de cada participante ser
reconhecido na sua singularidade nessa experiência compartilhada. Isso nos parece
importante se compreendemos que a possibilidade de se reconhecer a singularidade do
paciente e de sua relação com o estudante ou médico é o cerne do discurso da Psicologia
Médica. Pretender que futuros médicos reconheçam a dimensão do sujeito, em cada
paciente e em si mesmos, como organizadora do encontro clínico, sem que isso se passe na
relação professor-aluno durante a formação médica seria mesmo um paradoxo.
Nesse sentido, estamos falando, a partir da psicanálise, de uma experiência que se
passa no campo da formação médica, da transmissão de um saber irredutível ao
aprendizado de uma técnica. Estamos no campo da educação realizando uma experiência
pedagógica que tem conseqüências no nível simbólico das significações produzidas entre
os sujeitos da enunciação, que ficam confrontados com os limites de um saber da técnica e
são solicitados para uma prática interpretativa em um campo de significações e valores. Ao
valorizarmos que o médico não é mais o mestre de sua medicina mas sim um agente do
discurso médico, podemos investigar a possibilidade de uma prática pedagógica, a partir da
experiência conflitiva dos alunos envolvendo, inclusive, seus ideais em relação ao
exercício profissional, se pondo além da mera formação de técnicos presidida pelo valor de
eficácia.
Nossa proposta instituída na escola médica assim como o trabalho dos autores
citados na interface literatura e medicina são uma defesa do valor de verdade no discurso e
se opõe a um dos aspectos críticos da pós-modernidade, qual seja o triunfo de uma
tecnologia que tende a reduzir a prática médica a uma aplicação de técnicas no corpo do
paciente como mero portador da doença.
Notas:
1 Nesta época, os cientistas sociais que conquistavam um lugar na escola médica, em geral,
se afiliavam aos departamentos de Psiquiatria.
2
MERTON, Robert K. et al. (ed) The student-physician: introductory studies in thesociology of medical education. Massachusetts, Harvard University Press, 1957 e
BECKER, Howard S. et al. Boys in white: student culture in medical school. 4.ed. London,
Transaction Publishers, 1992, com primeira publicação em 1961.
3
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London, Collier-MacMillan Limited, 1963. GOFFMAN,Erving.
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A expropriação da saúde. Nêmesis damedicina
. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1975.4
Sobre o ensino da bioética, Renée Fox (1999) neste artigo realiza uma crítica ao ensinohegemônico de uma bioética principalista altamente racional, formal, amplamente
dedutiva no seu modo de argumentação, apoiada num conjunto relativamente pequeno de
conceitos - principalmente, os princípios de autonomia, beneficência, não-maleficência e
justiça, e regras derivadas relativas à verdade, privacidade, confidencialidade e fidelidade
(p. 8-9). Apesar de nos anos 90 terem surgido fortes críticas e propostas alternativas, dentre
elas a ética narrativa sobre a qual nos referiremos mais a frente neste artigo, a bioética
americana e seu ensino nas escolas médicas ainda é dominado pelo principalismo
abstrato da filosofia analítica (Cf. pp.8-12).
5
Em meados da década de 70, os professores Danilo Perestrello e Abram Ekstermanpropuseram a inclusão de observações psicológicas sob a epígrafe História da Pessoa,
quando da reformulação do prontuário médico para um novo modelo orientado por
problemas, no Serviço do Prof. Clementino Fraga Filho. O roteiro comentado da História
da Pessoa encontra-se no Apêndice do livro
A Medicina da Pessoa de Danilo Perestrello,1974, cujo texto é apresentado aos alunos do curso médico da UFRJ.
6 Greenhalgh e Hurwitz (1998) recomendam vários textos literários considerando,
inclusive, as sugestões de diversos professores de literatura e medicina. Indicam, também,
uma base de dados em Literatura e Medicina mantida pela New York University School of
Medicine, cujo endereço fornecem: http://endeavor.med.nyu.edu/lit-med (Cf. pp.273-278).
7 Neste sentido, The use of force
de William Carlos Williams e Mercy de Richard Selzertornaram-se clássicos das aulas de literatura e medicina nas escolas médicas americanas.
8 Anne Hudson Jones (1996) neste artigo nos dá um belíssimo exemplo da ética narrativa
através de sua análise do caso do pequeno Darren da novela
Other Womens Children dePerri Klass.
9 Por duas vezes surpreendemos a referência pouco explícita desse autor de estarmos
talvez no limiar de uma nova experiência da doença ou de uma nova medicina. Cf.
Foucault, 1977a, p.XIV e 1995a, p.38, respectivamente.
10 Ver SEAMARK, Clare J. & HUTCHINSON, Margaret. Treatment can be onerous for
patient and doctor.
British Medical Journal 320:1314-1317, 2000.11
Sobre a postulação de Foucault acerca do biopoder ou a biohistória, que enfatiza o papelregulador exercido pela medicina sobre a população, a espécie e sua articulação com a
racionalidade política, ver Foucault (1985) cap. V e (1997) p.213-235.
12 Byron Good é antropólogo e conduziu extensa pesquisa sobre a formação médica na
Harvard Medical School, cujas conclusões a que tivemos acesso se encontram publicadas
em GOOD, Byron (1994, p.65-87) e GOOD, Byron e GOOD, Mary-Jo (1993, p.81-107).
13 Durante o 2º semestre de 1995 gravamos, com o consentimento dos participantes, as
discussões realizadas no âmbito desta disciplina e procedemos a análise do discurso. Ver
SOUZA (1998).
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