16 outubro 2006

Próximo encontro: A Medicina Baseada em Evidências

O evento de fundação do Fórum de Psiquiatria e Saúde Mental, realizado em 09-10-06 foi um sucesso, contando com ampla participação de profissionais, supervisores e gestores dos principais serviços da reforma psiquiátrica do Rio de Janeiro.

O próximo encontro será no dia 06 de novembro às 20hs (sempre pontualmente) no Pinel. O tema discutido será "Medicina Baseada em Evidências", que será apresentado pelo psiquiatra Carlos Eduardo Estellita Lins do IFF. Em breve estarão disponíveis neste site os textos de referência para a discussão.

Porque um Fórum? A Psiquiatria na Globalização

(Mesa de fundação do Fórum de Psiquiatria e Saúde Mental, no dia 09 de outubro de 2006)
Eu gostaria de primeiramente agradecer a presença de todos e dizer que é uma felicidade para mim, ter sido premiado com a sorte de poder abrir as discussões desse nosso Fórum de Psiquiatria e Saúde Mental, que eu espero que sejam muitas e boas. Eu achei importante aproveitar essa oportunidade de ser o primeiro a falar, para inaugurar esse Fórum com uma citação de Franco Basaglia. Esse ato – inaugurar o Fórum de Psiquiatria e Saúde Mental com uma citação de Basaglia – é importante, pois marca de saída o lugar de onde estamos falando, para que não haja nenhuma dúvida de que essa iniciativa tem os pés plantados no processo da reforma psiquiátrica brasileira. Além disso, a citação de Basaglia, a meu ver, nos ajuda a pensar porque é importante se criar um fórum como esse no momento atual.

Passemos então ao Basaglia. É ele quem fala aqui agora:
“O problema da liberdade para o doente mental não surgiu de repente, pela súbita revelação de uma realidade desconhecida, mas ressurgiu com uma exigência que já não se pode ignorar, depois da transformação produzida pelos fármacos, na relação entre o doente e sua doença. Se o doente perdeu sua liberdade por causa da doença, a liberdade de recuperar a posse de si mesmo lhe foi dada pelo fármaco. Portanto, se foi possível ignorar o apelo lançado pelas teorias psicanalíticas que propunham uma nova abordagem da doença mental , agora que os novos fármacos criaram uma dimensão inédita entre o doente e sua doença, fazendo-o aparecer aos nossos olhos numa esfera completamente humana, já não é possível isolá-lo no círculo dos loucos. É hora então de enfrentar o problema do doente mental no hospital, para que ele possa reconquistar sua liberdade, que não lhe pode ser dada nem pelos fármacos nem pelo médico.”

Essa citação está no texto “A destruição do hospital psiquiátrico como lugar de institucionalização”, apresentado originalmente no I Congresso Internacional de Psiquiatria Social em Londres em 1964. Esse texto, segundo o próprio Basaglia, é o marco de uma nova etapa em sua trajetória e vai desembocar na experiência da Psiquiatria Democrática Italiana. Me pareceu oportuno começar com essa citação por dois motivos. Primeiro porque nos tempos atuais é importante lembrar e esclarecer os nossos adversários e as novas gerações que estão chegando ao nosso campo, que a Psiquiatria Democrática Italiana, da qual deriva a reforma psiquiátrica brasileira, não pode de maneira nenhuma ser confundida com a antipsiquiatria. Tem sido conveniente ultimamente aos nossos adversários nos colar a etiqueta da antipsiquiatria, coisa que não somos. É importante então afirmar isso aos adversários e esclarecer os que estão chegando. Mesmo que a diferença em relação à antipsiquiatria já esteja explícita, estampada no próprio significante que Basaglia escolheu para batizar a experiência que ele inaugura: Psiquiatria Democrática. E se psiquiatria está também aqui colocado no título de nosso Fórum, não é de qualquer psiquiatria que estamos falando, mas de uma que se insira na linhagem desse significante inventado por Basaglia para nomear sua práxis.
Eu imagino que essa citação tenha impactado alguns de vocês. Eu pelo menos fiquei bastante impactado quando encontrei no Basaglia uma relação tão intrínseca entre o problema da liberdade do doente mental e o surgimento dos psicofármacos. Eu repito esse trecho para que fique claro: “O problema da liberdade para o doente mental ressurgiu com uma exigência que já não se pode ignorar, depois da transformação produzida pelos fármacos.” Se ficamos tão surpresos, um pouco incomodados até, ao encontrar em Basaglia uma frase como essa, é porque ela coloca no centro da cena algo que no decorrer do movimento histórico da reforma foi sendo esquecido, foi sofrendo uma espécie de recalque. Esse objeto estranho, incômodo, que aparece nessa frase é o psicofármaco. Basaglia sem titubear coloca o fármaco na origem do movimento da reforma psiquiátrica, com toda lucidez, de quem é um homem mais afeito a realizações concretas do que a idealizações abstratas. Ele mostra que a relação do movimento da reforma psiquiátrica com os psicofármacos não é acidental, mas sim uma relação intrínseca em que a história da reforma psiquiátrica não é separável da história da psicofarmacologia. Os psicofármacos estão incluídos na reforma, são uma parte integrante e fundamental do nosso campo. Isto não significa que a reforma psiquiátrica possa ser reduzida aos progressos da psicofarmacologia. Dizer isso seria de uma estupidez incomensurável. A história, no entanto, fez com que aos poucos fôssemos nos esquecendo dessa relação intrínseca entre o psicofármaco e o surgimento da reforma, ao ponto de hoje, nos espantar essa frase de Basaglia. E talvez tivesse mesmo que ser assim. Tínhamos e ainda temos, uma tarefa enorme pela frente constituída pelas duas vertentes que historicamente se tornaram a marca do movimento da reforma: A desconstrução do manicômio e a implantação de serviços substitutivos. No entanto a reforma psiquiátrica em sua origem, não se reduzia somente a transformar a assistência psiquiátrica. O movimento político da reforma sempre foi muito mais amplo. Não apenas por que a reforma visava transformar também a relação da sociedade com a loucura, mas sobretudo, porque a própria reforma psiquiátrica estava inserida em um movimento muito mais amplo de transformação de toda a nossa cultura. O movimento da reforma psiquiátrica fazia parte de uma só onda, de um só movimento que queria transformar o mundo. Havia uma vitalidade revolucionária naquela época que contrasta com a epidemia de depressão que vivemos nos dias de hoje.
Hoje o mundo mudou, a psiquiatria mudou, e há algo da vitalidade da reforma que precisa, a meu ver, ser recuperado. Eu vou arriscar dizer então que para recuperar algo dessa vitalidade criativa, precisamos olhar para aquilo que não quisemos olhar. Falo do psicofármaco e dos saberes que gravitam em torno dele, aquilo que não privilegiamos num primeiro momento porque era prioritário na época combater o manicômio, mas que é nosso, faz parte da constituição do campo da reforma, e hoje é fundamental que nos apropriemos dele, para manter viva nossa sintonia crítica com as mudanças do mundo que o movimento mesmo da reforma ajudou a transformar.

Eu sei que todos vocês conhecem muito bem as teses de Foucault sobre as sociedades disciplinares. Mas precisarei retomá-las aqui para poder construir o meu argumento. Espero não chateá-los muito por isso nem tornar minha fala muito acadêmica. Tentarei ser o mais breve possível.
As sociedades disciplinares
Como vocês sabem, as sociedades disciplinares, que atingem seu apogeu no início do século XX, se caracterizaram por estar organizadas em grandes meios de confinamento: prisão, hospital, fábrica, escola, família. A rígida demarcação do espaço físico que caracteriza a estrutura disciplinar se reflete também no modo como o espaço subjetivo é experimentado. “A cada indivíduo seu lugar”, diz Foucault. A disciplina opera sobre os indivíduos delimitando as fronteiras que o comportamento de cada um deve respeitar na hierarquia que ela institui. O lugar da criança em relação aos pais, o lugar da esposa frente ao marido, da mulher na sociedade, do empregado frente ao patrão, etc, etc, etc.
A relação histórica da psiquiatria com as sociedades disciplinares, todos conhecem, desde o famoso livro de Foucault sobre a história da loucura. Cabia à psiquiatria justamente essa função de normalização da diferença e de exclusão da desrazão no interior da instituição disciplinar por excelência, o manicômio.

A recusa à disciplina
Os acontecimentos de maio de 1968, porém, marcaram uma certa virada na cultura do século XX. Havia a partir dali uma recusa generalizada a tudo o que caracterizava a sociedade disciplinar. As instituições, a hierarquia, os lugares pré-definidos para cada sujeito na organização social, tudo isso passou a ser questionado.
Segundo Robert Castel, o que caracterizou maio de 68 e os anos que se seguiram foi o deslocamento da política para o plano da vida cotidiana, fazendo emergir uma certa superposição entre revolução pessoal e revolução social. A militância política se voltava então para alvos mais delimitados, onde houvesse uma certa base de implicação pessoal direta. As assim chamadas “lutas setoriais” deslocaram o foco do combate político para novos setores institucionais – hospitais, prisões, instituições pedagógicas – e também para o próprio sujeito da liberação, dando origem às lutas contra as opressões cotidianas, as lutas das minorias sexuais, raciais, o feminismo, a liberação sexual, etc. O combate revolucionário passava agora necessariamente pela liberação do sujeito. Liberação do sujeito e a libertação das massas faziam parte de um só e mesmo combate.
A reforma psiquiátrica surge então nesse momento marcado por um imaginário político de liberação e vivido na época como uma recusa generalizada à repressão e às instituições. Nesse contexto a crítica à psiquiatria desfrutava de um certo interesse especial, de uma certa “mais-valia de interesse”, diz Castel, não só por causa do horror de suas instituições, mas também porque o que era reprimido pela psiquiatria era a própria loucura, que nas versões mais românticas e idealizadas, novamente palavras de Castel, era tomada muitas vezes como portadora de uma certa verdade misteriosa sobre a existência, sempre reprimida pela pressão social que a degradava em doença mental. O próprio Foucault também reconhece isso em “Verdade e Poder” de 1977, quando diz:

“Quando escrevi a História da Loucura usei, pelo menos implicitamente, essa noção de repressão. Acredito que então supunha uma espécie de loucura viva, volúvel e ansiosa que a mecânica do poder tinha conseguido reprimir e reduzir ao silêncio. Ora, me parece que a noção de repressão é totalmente inadequada para dar conta do que existe justamente de produtor no poder. (...) O que faz com que o poder se mantenha e seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir.”

Compreender essa passagem no pensamento de Foucault, de uma noção de poder como repressão, para uma concepção produtiva do poder, me parece uma ferramenta fundamental para entender como a psiquiatria contemporânea se insere nesse nosso mundo globalizado.

Do “sonho acabou” aos “sonhos vendidos”
Embora o tempo seja curto, não podemos deixar de mencionar que em toda essa movimentação política que caracterizou o final da década de 60, encontramos um interessante entrecruzamento entre a psicanálise e a política. De certo modo a difusão social da psicanálise contribuiu para esse movimento de liberação e de deslocamento da política para o plano da vida cotidiana, a partir da noção freudiana de que as neuroses e o mal-estar na cultura eram decorrentes da repressão imposta à sexualidade, em virtude dos valores e costumes morais que tradicionalmente sustentaram a civilização através de suas instituições. A difusão social do marxismo e da psicanálise no final dos anos 60 fazia acreditar que se revolucionaria, num mesmo movimento, o modelo político-econômico e os costumes, fazendo do Estado e suas instituições, os principais focos onde se deveria combater o poder e a repressão impostos aos sujeitos pela tradição e pela hierarquia. No entanto, o que não se podia perceber ainda é que o capitalismo, para funcionar, não depende de nenhuma transcendência, ou seja, de nenhum vínculo com o Estado e sua lógica de governo disciplinar, nem com a Igreja Católica e sua moral sexual repressiva. Muito pelo contrário, a lógica de funcionamento do capitalismo só depende de uma lei – que tudo possa e deva ser trocado por dinheiro. Trata-se de uma lei que, diferentemente da lei veiculada pela Igreja e pelo Estado, não é transcendente nem interdita, sendo ao contrário, imanente e propulsiva, funcionando muito mais intensamente em um ambiente de liberação, num neoliberalismo sem barreiras e sem interdições.
O capitalismo foi assim, capaz de se renovar pegando carona no próprio movimento de liberação e de contestação à hierarquia, se desfazendo das amarras que tinha com o Estado e com a tradição. Se num primeiro momento o cabelo comprido dos Beatles foi um significante que colocava em questão toda a moral tradicional, no modo mesmo em que esta se encarnava na estética coletiva dos corpos; em um segundo momento, o cabelo comprido é vendido como um modelo para todos, um meio inédito encontrado pelo capitalismo para vender uma nova estética da existência e transformar em produto até mesmo o semblante de anticapitalista. Talvez por isso o próprio John Lennon tenha sido um dos primeiros a anunciar: “o sonho acabou”.
De fato o sonho acabou tão rápido que já na década seguinte, Cazuza emprestava a voz à sua geração pedindo uma ideologia para viver, com seus heróis mortos de overdose e os sonhos todos vendidos. Nos anos 80 os hippies deram lugar aos yuppies, e a subjetividade liberada logo se encontrava sem confrontação, se transfigurando num potencial psicológico que não tinha outro objetivo a não ser a sua própria cultura. A sociedade inteira se reestruturou segundo a lógica da moda, da sedução e da renovação permanente, instaurando o reinado do efêmero e a cultura hedonista típica do nosso tempo. A normatividade social passou a se impor não mais pela disciplina, mas pelo modelo da escolha e do espetáculo. Hoje é uma mais-valia de gozo ou de eficiência que procuramos extrair não tanto das nossas profundezas, mas da superfície corporal sempre conectada aos gadgets e drogas inventadas pela aliança do capitalismo com a ciência.
Hoje temos todos a impressão de que já não faz mais muito sentido lutar pela liberação sexual, ou contra a repressão gerada pelos nossos valores morais. A questão com a qual nos debatemos hoje parece ser muito mais do tipo: onde vai parar o excesso de exposição da sexualidade? Como fazer com a falta de limites generalizada? O que fazer com os jovens que querem gozar o tempo todo, a qualquer preço, de qualquer maneira, se drogando, usando quilos de viagra, filmando a parceira na internet, matando os pais para conseguir algum dinheiro, etc, etc, etc, A cada dia parece que nos perguntamos o oposto de antes: aonde foram parar os valores?
Psiquiatria e Globalização
Do mesmo modo, os problemas que encontramos na psiquiatria contemporânea também passam de cara por uma questão que remete à ausência de limites e fronteiras. O poder psiquiátrico, para usar agora uma linguagem mais militante, não se passa mais somente no espaço fechado do manicômio, nem opera efetuando aquela rígida distinção entre loucura e normalidade que nós tanto aprendemos a combater. Os poderes que atravessam o campo da psiquiatria investem agora prioritariamente na indeterminação dos limites entre o normal e o patológico, tomando como foco principal de sua incidência as fronteiras abertas da depressão, do transtorno do pânico, da fobia social, da hiperatividade, etc.
O último censo sobre a prevalência de transtornos mentais nos Estados Unidos publicado no ano passado, mostra isso com uma crueza espantosa. Foi encontrado que, nada mais nada menos do que metade da sociedade americana preenche os critérios do DSM IV para alguma doença mental ao longo da vida. É o caso de se perguntar se não estamos no conto de Machado de Assis: o mundo pirou, ou enlouqueceu-se a própria psiquiatria?
Em outro artigo recente publicado na New England Journal of Medicine encontramos que, embora na última década a prevalência de transtornos mentais não tenha se alterado, o número de pessoas que faz tratamento psiquiátrico nos EUA, dobrou da década de 90 para cá. Nada menos do que 20% da população americana entre 15 e 54 anos de idade, se encontrava fazendo tratamento psiquiátrico entre 2001 e 2003. Entre esses, apenas metade preenchia critérios para algum transtorno mental.
O problema é tão grave que mesmo representantes ilustres da psiquiatria mundial se insurgem contra essa situação. O psiquiatra brasileiro Jorge Alberto Costa e Silva, por exemplo, que foi presidente da Associação Mundial de Psiquiatria já alertava há 5 anos atrás para a proliferação social dos diagnósticos psiquiátricos e seu vínculo com os interesses da indústria farmacêutica em uma entrevista na Revista Veja intitulado “Psiquiatria S/A”:

“Há uma psiquiatrização ocorrendo na sociedade. Já existem quase 500 tipos descritos de transtorno mental e do comportamento. Com tantas descrições, quase ninguém escaparia a um diagnóstico de problemas mentais. Se o sujeito é tímido e você forçar um pouquinho, ele pode ser enquadrado na categoria de fobia social. Se ele tem mania, leva um diagnóstico de transtorno obsessivo-compulsivo. Se a criança está agitada na escola, podem achar que está tendo um transtorno de atenção e hiperatividade. Coisas normais da vida estão sendo encaradas como patologias. Hoje em dia, se um indivíduo não tomar cuidado e passar desavisado pela porta de um psiquiatra pode entrar numa categoria dessas e sair de lá com um diagnóstico e um tratamento na mão."

Na segunda metade do século XX, a saúde esteve no centro da política e da cultura ocidental e poderá figurar, como assinala D. Healy, como foco primário da política global no século XXI. A indústria farmacêutica é um dos negócios mais lucrativos do planeta, perdendo apenas para as companhias de petróleo. Segundo estimativa da revista inglesa Focus, o setor teria faturado 406 bilhões de dólares só em 2002.
Os médicos só agora começam a abrir os olhos. O BMJ lançou há pouco tempo um número inteiro sobre o tema da medicalização em todos os setores da medicina, com o título “Tôo much medicine?” Entre 1975 e 1990 o financiamento pela indústria de pesquisas na área biomédica passou de menos de 5 milhões para centenas de milhões de dólares. Na virada do milênio a indústria farmacêutica já era responsável pelo financiamento de 70% das pesquisas médicas. Nos últimos 5 anos tem proliferado artigos nas revistas médicas que mostram empiricamente o impacto dessa indústria não só na medicalização desnecessária da população, mas também os seus efeitos deletérios sobre a própria produção conhecimento científico. É nada menos do que a legitimidade da ciência que está em questão, por isso alguns autores em um dossiê sobre o assunto no Journal of Medical Ethics, por exemplo, chegam a propor uma separação total entre instituições científicas e acadêmicas e indústria.
Não é difícil reconhecer que todo esse processo de industrialização leva a medicina para além das fronteiras da patologia. A medicina de hoje não se limita apenas ao tratamento de pessoas que estão doentes. A medicina agora passa a intervir também na saúde de indivíduos que não estão doentes, mas que lhe demandam ajuda farmacológica para lidar com as “dificuldades da existência” ou para “esculpirem" seus corpos, sua performance ou mesmo a personalidade, como assinalou Peter Kramer no livro Ouvindo o Prozac. Alguns autores contemporâneos dizem que caminhamos para a era do pós-humano, mas como bem assiná-la Alain Ehrenberg, estamos vivendo, já no presente, em uma sociedade composta, em grande parte, por indivíduos farmacohumanos.
A medicina, tornada um dos braços mais lucrativos do capitalismo global, se encontra hoje na condição de fabricar ou transformar radicalmente não só os nossos modos de viver, mas também isso mesmo que entendemos por vida, se constituindo assim, num dos principais vetores da história da humanidade. A medicina atual não se limita apenas ao sofrimento individual dos pacientes. Hoje é no campo da medicina que se decide grande parte do que será o nosso porvir coletivo e individual. É para participarmos de alguma maneira na construção desse porvir que queremos convidá-los a fundar esse Fórum de Psiquiatria e Saúde Mental. Deixo vocês aqui com uma última citação. Dessa vez do psiquiatra francês Edouard Zarifian, que se em 1978 foi um dos fundadores da Associação Francesa de Psiquiatria Biológica, hoje é um dos principais críticos desse processo de medicalização promovido pela psiquiatria da indústria farmacêutica:

“Atualmente nós saímos da psiquiatria, para fabricar uma clínica dos sofrimentos humanos, inelutavelmente ligados às turbulências da vida, propondo a prescrição de um medicamento como resposta obrigatória e exclusiva. Nós, psiquiatras, nos tornamos instrumentos de uma regulação social? Nossa função é convencer o infeliz de que ele é na verdade um doente? Todo o arsenal está pronto para isso. Cabe a nós escolher, se ainda há tempo."
(Adriano Amaral de Aguiar - Coordenador da Residência em Psiquiatria do CPRJ)

TDAH: Uma epidemia em curso?

TDA/H: uma “epidemia” em curso?

Intervenção de Rossano Cabral Lima no I encontro do Forum de Psiquiatria e Saúde Mental
Psiquiatra Infantil; Mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ

Tem chamado a atenção de clínicos, pediatras, profissionais de saúde mental e educadores a onipresença de uma entidade nosológica pouco diagnosticada no Brasil até uma ou duas décadas atrás: o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDA/H). Em seus domínios, crianças anteriormente tidas como “peraltas”, “mal-educadas”, “indisciplinadas” ou “desmotivadas”, e adultos que se consideravam “desorganizados” e “irresponsáveis”, passam a ser tomados como acometidos por uma disfunção nos circuitos cerebrais, supostamente de origem genética, que provocaria uma deficiência ou inconstância na atenção e um excesso nos níveis de ação. Como entender a explosão atual desse transtorno? Pela versão "oficial", amplamente divulgada na mídia, o número crescente de diagnósticos apenas faria justiça a crianças e adultos que vinham sendo subdiagnosticados, e que agora estariam sendo beneficiários do avanço e da disseminação do saber psiquiátrico. A ciência médica, desse ponto de vista, estaria finalmente mostrando a “verdade” sobre o que esses pacientes realmente têm, e que antes poucos conseguiam enxergar.
Porém, há uma outra possibilidade de compreender a “epidemia” contemporânea de TDA/H. Para isso, precisaremos desviar nosso olhar da fisiologia cerebral e mirar a cultura atual. Nos últimos anos, a pluralidade de abordagens das condutas, afetos e mal-estares individuais tem sido substituída pela hegemonia de concepções fisicalistas, que tendem a reduzir o humano a sua dimensão biológica. Até meados do século passado, tais concepções conviviam com outras que se originavam em diferentes campos e que utilizavam outros vocabulários. Por exemplo, os comportamentos que traziam desconforto a si e a outros podiam ser considerados como tendo causas médicas, mas também podiam ser tomados como efeitos da ação insuficiente ou equivocada de instâncias como a família ou a escola, da falta de obstinação e vontade ou de conflitos interiores. Hoje, explicações psicológicas, pedagógicas ou oriundas da moral leiga são dispensadas como equivocadas e estereotipadas, sendo substituídas, especialmente, por outras que localizam no corpo as razões dos dissabores experimentados na vida. Tem sido notada uma tendência dos indivíduos - sejam eles "normais" ou "desviantes" - buscarem referenciais corporais ou biológicos nos quais ancorar a própria identidade ou a de sua prole. Num mundo no qual os referenciais tradicionais dos quais as pessoas extraiam as matérias-primas de sua identidade, como a Igreja, as ideologias, o trabalho e a família, têm perdido potência e se desagregado, o corpo tem se tornado uma das únicas fontes de certeza e estabilidade. Essa ascenção dos atributos corporais a matrizes identitárias privilegiadas reforça a decadência da interioridade como o lugar no qual se encontra as verdades do eu. Assim, ao invés de procurar saber quem se é por meio de um demorado e complexo mergulho interior, investigando sentimentos e representações conflituosas, tem se preferido recorrer à biologia para explicar temperamentos e comportamentos.
Atribuir suas dificuldades ou as de seus filhos ao TDA/H é um exemplo desse tipo de recurso. Se a princípio seu conhecimento era restrito a setores da comunidade psiquiátrica, essa entidade passou, especialmente a partir dos anos 90, a influenciar o raciocínio clínico de outros especialistas e a fazer parte do vocabulário cotidiano de professores, pais e outros adultos. Tido como o distúrbio psiquiátrico mais comum entre crianças em idade escolar e a principal causa de encaminhamento de crianças para os especialistas, seus sintomas, de início precoce, consistem em hiperatividade, desatenção, subaproveitamento acadêmico, e comportamento impulsivo. Antes descrito quase exclusivamente na infância, faixa etária que ainda hoje responde pelo maior número de diagnósticos, o TDA/H tem sido crescentemente identificado em adultos. Acredita-se que cerca de um a dois terços dos casos do transtorno na infância persista após a adolescência. Há controvérsias sobre o aumento de sua prevalência nos últimos anos. Para diversos autores os instrumentos diagnósticos mais recentes, como as últimas versões do Diagnostic and Statistic Manual of Mental Diseases (DSM-III-R e o DSM-IV, respectivamente sua terceira edição revisada e sua quarta edição) tendem a identificá-lo mais que as anteriores. Da mesma forma, em comparação com o que ocorria há uma década, parece haver uma tendência a incluir casos mais leves, indivíduos com um diagnóstico “subliminar” ou mesmo pessoas que possuam “traços” do transtorno. Apesar de suas taxas médias de prevalência na infância se situarem entre 3 a 5%, estudos em diferentes países (ou mesmo dentro de uma mesma nação) têm encontrado dados discrepantes, com variação entre 1 e 20%. Resultados divergentes também têm aparecido nas pesquisas sobre a fisiopatogenia do TDA/H, apesar das afirmações "definitivas" sobre as origens neurais do transtorno.
Uma das consequências de um diagnóstico de TDA/H é a quase onipresente prescrição de Ritalina (nome comercial da substância metilfenidato), independente da gravidade. O uso da droga, apesar de submetido a rígido controle, tem se tornado um problema de saúde pública, especialmente nos EUA, onde sua produção cresceu 700 % entre 1990 e 1998, quando quase quatro milhões de pessoas - a maioria crianças - usavam o fármaco. No Brasil os números são mais modestos, mas se em 2000 foram vendidas cerca de 71 mil caixas do remédio, em 2004 esse número chegou a 1milhão.
Podemos indagar por que os pais (e outros adultos) têm aderido com tanta rapidez a esse diagnóstico e ao uso do fármaco, por vezes os recebendo com alívio e entusiasmo. Uma das chaves para se entender a explosão de diagnósticos de TDA/H e, principalmente, o sucesso comercial da Ritalina, reside na ênfase atual na performance. À medida que seu padrão econômico se deteriora, a classe média precisa lutar com renovada dedicação para se afastar da linha da pobreza e manter seu nível de consumo. Nessa batalha, a existência de uma medicação que pode melhorar o desempenho (principalmente escolar), independente de um diagnóstico “real” de TDA/H, torna-se muito atraente. A questão, então, desloca-se de por que usar a Ritalina para por que não usá-la. Se o vizinho a usa e apresenta uma melhora da performance no colégio ou no trabalho, por que também não experimentar seus benefícios, ao invés de se dedicar de modo extenuante a uma melhor nota ou a conseguir uma promoção? Vendo a sombra da desatenção ameaçar sua eficácia ou a de seus filhos, resta ao indivíduo poucas saídas - e a identificação com o TDA/H tem sido uma delas. Tem se instalado uma indiferenciação entre os usos terapêutico e cosmético da Ritalina, na lacuna produzida pelas incertas fronteiras entre o transtorno bem definido, suas formas “subclínicas” e seus “traços” presentes nos normais. O transtorno se alimenta dessa indeterminação, pois dela depende o crescente reconhecimento, pelas pessoas, de seus traços de comportamento - ou das condutas dos filhos - nas descrições oferecidas pelo DSM ou suas versões “para leigos” divulgadas na mídia. A despeito das tentativas de aperfeiçoamento de critérios objetivos para a caracterização do TDA/H e sua diferenciação de outros estados, a confusão entre a desatenção “normal”, a supostamente “reativa”, estados de devaneio criativo e a patologia psiquiátrica também persiste porque a entidade já circula de modo semi-autônomo nas cabeças dos professores, nas revistas e cadernos de saúde, na literatura de “auto-ajuda” e no vocabulário cotidiano de pais. Quando essas instâncias, especialmente a escola, avalizam rapidamente o diagnóstico e pressionam pelo uso da medicação, é quase inevitável a inclusão da criança no “admirável mundo” do TDA/H.
A epidemia de TDA/H pode ser considerada um sinal dos tempos. É curioso notar que a metamorfose da tríade desatenção-hiperatividade-impulsividade em doença é estimulada por uma cultura que depende de uma sobrecarga de estímulos perceptivos, de uma permanente disposição em desviar o alvo da atenção, da celebração da agressividade e da mobilidade incessante na busca de sucesso e prosperidade. Exige-se que o indivíduo, a fim de obter uma boa performance em todas os recantos da vida, mantenha-se concentrado em suas atividades, mas também que demonstre uma disposição maleável de trocar o foco de interesse quando desejar ou lhe for requerido. Porém, o limiar a partir do qual uma atenção competente transforma-se em perigosos estados de distratibilidade é muito baixo. Quando a desatenção ou hiperatividade ameaça prejudicar seu potencial competitivo, aderir ao ideário do TDA/H e à Ritalina tem se tornado uma maneira de pais maximizarem a eficácia de seus filhos. Por outro lado, na insuficiência da intervenção escolar ou familiar, a hipótese TDA/H localiza no indivíduo e em sua constituição biológica a explicação dos insucessos acadêmicos, eximindo qualquer instância cultural da responsabilidade pelas dificuldades ou “sintomas” presentes.
Patrocinado pela cultura do corpo e da saúde e pelo primado da biologia, o TDA/H deverá incorporar-se definitivamente à vida contemporânea. Tentar ignorá-lo é tarefa tão condenável quanto sucumbir a sua transformação em doença a explicar todos os desvios das crianças e insucessos dos adultos. Não nos interessa propor um retorno saudosista a uma ordem repressora, que prescrevia castigos físicos e morais para as crianças incômodas ou reservava aos pais uma culpa impotente, por não oferecer-lhes alternativas de ação. Devemos, porém, buscar resistir ou encontrar saídas criativas para a tendência contemporânea a reduzir tudo que é humano a concepções organicistas. A figura do TDA/H pode, assim, encontrar melhor uso quando encarada como um diagnóstico “operacional”, uma descrição que, entre outras, pode ser útil para ajudar a lidar com certos comportamentos infantis. Isso é preferível a sua caracterização como uma “coisa”, como uma doença aparentemente independente dos sujeitos, radicada na rede neural e determinada pela genética, sendo revelada quando a criança preenche um número mínimo de critérios diagnósticos. A aplicação simplista e mecânica desses critérios, na verdade, tem sido um dos motivos do uso irresponsável dessa categoria diagnóstica para além de sua capacidade explicativa. Mais que fazer uma lista de comportamentos presentes ou ausentes, cabe ao profissional contextualizar os "sintomas", investigando sua relação como o ambiente familiar e escolar. Dessa forma, mesmo o uso da Ritalina, que pode ser precioso se bem indicado, será parte de um esforço terapêutico que não pode, e nem deve, ignorar os vários sentidos implicados nas condutas das crianças, ou excluir outras explicações sobre esses comportamentos em nome de uma alegoria neuropsiquiática, cujo uso exagerado pode acabar por resultar em seu próprio descrédito.